DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS: Isonomia passa longe da Papuda
Quando Ana (nome fictício) estaciona o carro na fila da Papuda, ainda não há Sol e a quantidade de pessoas esperando é tão grande que não raro surgem vendedores ambulantes para se aproveitar da aglomeração. Carros e gente se misturam em uma procissão, deslocando-se vagarosamente à medida que o dia nasce. Ela aguarda em silêncio, ao lado da mãe - que tem deficiência auditiva-, a autorização para entrar no complexo penitenciário e visitar os três irmãos que cumprem pena no local. Isso se repete pelo menos de 15 em 15 dias, sempre às quartas-feiras.
A maior preocupação da moça é com o irmão mais velho, de 45 anos, que sofre de asma e está preso preventivamente por tráfico de drogas há quase um ano, aguardando resultado do julgamento. “Quando o clima muda é muito ruim pra ele. Na cela, tem muita umidade e ele já quase morreu lá, durante uma crise”, conta.
Ela aponta irregularidades na apreensão do homem, dizendo achar estranho que um réu primário possa pegar até 25 anos de cadeia, e critica a investigação, que teria incriminado o irmão sem provas consistentes. O que realmente indigna a moça, porém, é a dificuldade para os remédios chegarem ao irmão. “Quando ele teve a crise, foi porque demoraram até o último momento para entregar a medicação que compramos. Precisou do advogado para fazer chegar. Ele já perdeu 32 quilos lá dentro”, revolta-se.
A família de Ana teria conseguido um laudo médico da rede pública de saúde que atesta a gravidade da situação do irmão e agora espera conseguir transferi-lo para prisão domiciliar, caso ele seja condenado. “Se aqueles outros podem...” - diz, com desprezo- “...então nós também devemos conseguir”, completa a jovem.
Privilégio
Ana se referia a José Genoino, ex-presidente do PT e deputado federal licenciado que, curiosamente, ainda não conseguiu mudar sua situação carcerária definitivamente, apesar de alegar ter problemas cardíacos graves. Nem sabe se isso realmente acontecerá.
Versão Oficial
A Secretaria de Segurança Pública (SSD-DF) informou que o sistema penitenciário da capital dispõe de 94 profissionais de saúde, entre médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e outros, e que o atendimento prestado “é aquele demandado pelo sentenciado, ou seja, vai depender da patologia do preso e dos cuidados necessários.” A pasta ainda informa que “o Estado é responsável pela vida dos sentenciados, independentemente da condição social ou cargo que ocupa”.
“Por um acaso tem duas legislações?”
A diferença de tratamento entre os presos que são homens públicos e as pessoas ditas comuns é citada pelo ex-presidiário Fernando de Figueiredo, 41 anos. “Já vi gente morrer no corró (cela especial para quem aguarda atendimento médico), esperando para ser tratado. Aí o camarada tem qualquer coisa no coração e o mandam direto para o hospital bonito”, esbraveja. Fernando cumpriu pena de 2002 a 2006 em regime fechado na Papuda e passou a coordenar a Cooperativa de Produção Artesanal Sonhos de Liberdade, que dá oportunidade de trabalho a encarcerados do regime semiaberto e ex-presidiários, após ser indultado. “Tudo para o preso comum é difícil. Tratamento para nós era ‘chico doce’: se está doendo, o guarda chega e senta a chibata até passar”, diz.
Fernando afirma ter sofrido graves crises de gastrite e úlcera enquanto esteve encarcerado, e revela só ter conseguido se tratar adequadamente após deixar o presídio. “Cheguei a passar noites ‘batendo na lata’ (expressão para a maneira como os presos chamam os guardas caso precisem de assistência), gemendo de dor, sem ninguém vir dar atendimento”, revela. “Por um acaso tem duas legislações? Dois códigos penais? O sangue que corre na veia deles (condenados do mensalão na Papuda) é diferente do nosso?”, questiona, referindo-se a Genoino. na página 17.
Tratamento deve ser igual a todos
Dados da Secretaria de Segurança mostram que somente na ala em que José Dirceu e Delúbio Soares cumprem pena em regime semiaberto, o Centro de Integração e Reeducação (CIR), existem 67 pessoas com diagnóstico de hipertensão, 15 com diabetes, uma com tuberculose e uma com alguma DST.
Um desses diabéticos é o neto de Carlos (nome fictício), encarcerado há quatro meses. O senhor clama por melhorias na maneira como a doença do rapaz é tratada. “Já teve atraso na entrega do medicamento que ele precisa”, revela, elevando o tom de voz: “Ele já está preso, no maior sufoco, então que pelo menos receba a atenção necessária!”.
Direitos
É também assim que o presidente da Comissão de Ciências Criminais da Ordem dos Advogados do Brasil do DF (OAB-DF), Alexandre Queiroz, pensa: “O preso, por mais que tenha cometido erros, não perde os direitos dele enquanto ser humano”, avalia.
A situação na Papuda, não apenas referente a tratamentos médicos, mas principalmente quanto às visitações, chegou a um ponto tão crítico que a Vara de Execução Penal (VEP) do DF precisou soltar uma decisão que aponta o óbvio: todos no presídio devem ser tratados igualmente. As visitações aos presos do mensalão, que aconteciam em horários especiais e sem que amigos ou parentes desses indivíduos precisassem sequer pegar a fila convencional, foi criticada. “Não há qualquer justificativa para que seja dado a um interno/grupo específico tratamento distinto daquele dispensado a todos os demais reclusos”, determinou a Vara, na última quinta-feira (28).
Precedente
A transferência para prisão domiciliar devido à doença, no entanto, não é novidade. No site do Tribunal de Justiça do DF (TJDFT), pelo menos um precedente pode ser encontrado, decidido em 8 de março de 2012.
Segundo o acórdão, era um sexagenário portador de cardiopatia grave e que, assim como Genoino, havia sido "recentemente" submetido a cirurgia de risco. Ele conseguiu a transferência, apoiado pelo pela Lei 12.403/2011, que permite substituir até mesmo uma prisão preventiva por domiciliar "quando o agente for extremamente debilitado por motivo de doença grave".
Será que vai melhorar?
Para o ex-presidiário Fernando de Figueiredo, alguns incidentes ainda colaboram para que a situação fique pior, como o caso de dois presidiários que fizeram reféns enquanto se tratavam no Hospital do Paranoá. “Já é uma dificuldade impressionante qualquer um ser encaminhado para o hospital. Aí vêm esses dois malas e fazem uma besteira dessas”, reclama Fernando.
Para alguns parentes de presos, a solução para a situação parece distante. “Depois que passar esse ‘fuzuê’ em torno desse caso (mensalão), acho que vai ficar a mesma coisa”, conclui Ana, enquanto o Sol castiga as costas na volta para casa.
À luz da situação, talvez as palavras de George Orwell em Revolução dos Bichos” nunca tenham sido mais corretas: Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.
Ponto de Vista
Para o advogado criminal Cléber Lopes, o problema não é o que é disposto na Constituição, mas a aplicação das regras já existentes. “Genoino está sendo privilegiado pelo sistema de saúde, no mínimo”, afirma, categórico. “Os presos têm direito de serem assistidos por médicos de confiança. Mas 99% da massa carcerária não tem condições de ter um médico particular, então são submetidos à rede pública, nas condições que conhecemos. Nos casos que ganham repercussão, o Estado provém, mas o sistema não é isonômico de maneira geral”, pondera. Para ele, o foco não tem que ser somente os privilégios que os presos do mensalão estão tendo na Papuda, mas como esse pode ser o momento para repensar o sistema prisional como um todo. Ele diz acreditar que haverá pressão midiática e social para que os presos sejam tratados da mesma forma, e como pensa ser muito difícil que tratem os políticos da maneira geralmente usada com os “presos comuns”, podem haver avanços na área de assistência médica e acomodações.
Saiba Mais
De acordo com a SSP-DF, o sistema penitenciário da capital possui 21 técnicos de enfermagem,17 psicólogos, 16 enfermeiros, 11 médicos, 11 dentistas, nove assistentes sociais, quatro terapeutas, três farmacêuticos e dois fisioterapeutas à disposição dos encarcerados.
Segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a Papuda, que tem ambulatório, é uma das 96 dentre as quase 1,5 mil penitenciárias do País que possuem módulos de saúde.
As visitações regulares à Papuda acontecem às quartas e quintas, mas para conseguir o máximo de tempo com seus entes queridos ou colegas presos, muitos visitantes chegam na manhã do dia anterior para entrar na fila e pegar uma senha na entrada.
Eduardo Brito / Eric Zambon
Especial para o Jornal de Brasília
Fonte: Da redação do clicabrasilia.com.br
DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS: Isonomia passa longe da Papuda
Reviewed by Diário de Ceilândia
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sábado, novembro 30, 2013
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